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Relação entre anarquismo e aristocracia

proudhon[…] A diferença entre a concepção anarquista de estratégia num mundo dominado pela política e outras utilizadas pelos movimentos com os quais competiu é provocada, em parte, pelo individualismo libertário e, em parte, pela convicção – já observada por nós – de que, pelo menos em sentido amplo, os meios afetam profundamente os fins. Compartilhando metaforicamente a afirmação de Cristo de que não se pode trocar demônios por Belzebu, os anarquistas consideram contra-revolucionárias todas as instituições e partidos que têm como base a ideia de regular as transformações sociais por meio de atos do governo e leis criadas pelo homem. Como prova desse argumento, apontam o fato de que todas as revoluções realizadas por meios políticos acabaram sempre em ditadura: recorrer à coerção acabou por transformá-las, fazendo com que traíssem o ideal revolucionário. É por essa razão que os anarquistas não apenas rejeitam a ação política como tal, mas atacam também o reformismo – a ideia de que a sociedade poderá ser transformada através de medidas graduais – e negam a teoria de que deve haver um período de transição entre o Estado capitalista e a sociedade anarquista. Talvez seja realmente impossível que a sociedade consiga atingir a liberdade completa de uma só vez, mas o anarquista acredita que este deveria ser o seu objetivo básico e que ela deveria continuar lutando, utilizando todas as falhas da sociedade para atingi-lo.

Os anarquistas, portanto, baseiam suas táticas na teoria da “ação direta” e afirmam que os meios que utilizam são essencialmente sociais e econômicos. Tais meios incluem uma grande variedade de táticas, que vão desde a greve geral e a resistênca ao serviço militar até a formação de comunidades cooperativas e uniões de crédito – com a finalidade de dissolver a ordem vigente e não apenas preparar a revolução social, como assegurar-se que, uma vez iniciada, ela não tomará rumos autocráticos. Mas a diferença entre meios socioeconômicos e políticos é, na verdade, bem menos definida do que geralmente afirmam os anarquistas, já que uma greve geral com o objetivo de provocar mudanças na estrutura política da sociedade – ou a dissolução dessa estrutura – é, na verdade, tal como Clausewitz disse sobre a guerra, ação política executada através de outros meios. O mesmo pode ser dito das revoltas defendidas em vários períodos pelos anarquistas mais violentos e sobre os assassinatos cometidos pela minoria terrorista entre 1880 e 1890.

Mas não podemos permitir que a questão da definição oculte a diferença que realmente existe entre a ação direta advogada pelos anarquistas e os métodos utilizados por outros movimentos de esquerda. Pois é a diferença que une e caracteriza todas as várias táticas propostas pelos anarquistas; por mais que possam divergir sobre questões tais como o emprego ou não da violência, a ação da massa contra a ação individual – o fato é que todas são baseadas em decisões pessoais diretas. O indivíduo participa voluntariamente de uma greve geral, por sua livre e espontânea vontade, torna-se membro de uma comunidade; ou se recusa a prestar o serviço militar ou participa de uma rebelião. Não há coerção nem delegação de responsabilidades – o indivíduo vai ou vem, age ou deixa de agir segundo suas conveniências. É verdade que a imagem anarquista de revolução assume com frequência a forma de uma revolta espontânea do povo; mas o povo não é visto como uma massa, no sentido marxista, mas como uma coleção de indivíduos soberanos, cada um dos quais deve decidir sozinho se quer ou não agir.

As formas de ação revolucionária baseadas na vontade espontânea do indivíduo são obviamente acompanhadas pelo fim da sociedade livre, na qual a administração de assuntos econômicos e sociais será executada por pequenos grupos locais e funcionais que exigirão do indivíduo um mínimo de sacrifício de sua soberania, necessário para uma vida que foi descentralizada, desburocratizada e altamente simplificada. Na verdade, os indivíduos se reunirão em comunas e associações operárias e essas, por sua vez, serão reunidas em sessões regionais. As autoridades dominadoras serão substituídas por secretariados cordenados. Nessa rede orgânica de equilíbrio de interesses, baseada no anseio natural pela ajuda mútua, as formas artificiais de coerção tornar-se-ão desnecessárias.

A preocupação extremada com a soberania da ação escolha individual domina não apenas as ideias anarquistas sobre táticas revolucionárias e a futura estrutura da sociedade; ela também explica por que razão o anarquista rejeita tanto a democracia quanto a autocracia. Nenhuma concepção do anarquismo fica mais distante da verdade do que aquela que o considera uma forma extrema de democracia. A democracia prega a soberania do povo. O anarquismo, a soberania da pessoa. Isso significa que o anarquista nega muitas das formas e ideias democráticas. As instituições parlamentares são rejeitadas porque significam que o indivíduo abdicou de sua soberania, delegando-a a um representante e, ao fazê-lo, permitiu que fossem tomadas decisões em seu nome, sobre as quais já não tem nenhum controle. É por essa razão que os anarquistas consideram votar um ato que trai a liberdade, tanto simbolicamente quanto de fato. “O sufrágio universal é a contra-revolução”, bradou Proudhon – e nenhum dos seus sucessores o contestou.

Mas a oposição anarquista à democracia vai além da simples disputa por modelos. Ela envolve a não-aceitação da ideia de que o povo é uma entidade totalmente distinta dos indivíduos que a compõem; também implica a negação do governo popular. A esse respeito, Oscar Wilde falou pelos anarquistas quando disse: “Não há nenhuma necessidade de separar a monarquia da plebe: toda forma de autoridade é igualmente nociva”. Os anarquistas rejeitam, principalmente, que a maioria tenha o direito de impor sua vontade à minoria. O direito não está nos números, mas na razão; a justiça não está na contagem das cabeças, mas na liberdade do coração dos homens. “Só há um poder – disse Godwin – ao qual posso votar uma genuína obediência: a decisão a que cheguei a partir da minha própria compreensão, os ditames da minha própria consciência”.

E Proudhon pensava tanto em Napoleão III quanto na democracia ao declarar, orgulhosamente: “Quem quer que coloque a mão sobre mim para governar-me é um usurpador e um tirano – eu o declaro meu inimigo”.

Na verdade, o ideal do anarquismo, longe de ser a democracia levada ao seu fim lógico, se aproxima mais da aristocracia universalizada e purificada. Aqui a espiral da história fechou o círculo e onde a aristocracia – que atingiu seu ponto máximo na visão rabeiasiaian do abade de Théleme – exigia que os homens nobres fossem livres, o anarquismo sempre afirmou a nobreza dos homens livres. Na visão definitiva do anarquismo, esses homens aparecem como deuses, majestosos, uma geração de príncipes, como os descreveu Shelley:

“A odiosa máscara caiu, e o homem permanece
sem centro, livre, sem restrições, mas homem
igual, sem castas, tribos ou nações,
isento de medo, respeito, hierarquias,
Rei de si mesmo; apenas gentil, sábio, mas homem

sem paixões? – não, entretanto livre de culpa ou sofrimento
que por sua vontade tivesse criado ou sofrido
ainda não isento da sorte, da morte e da inconstância,
embora ordenando-as como escravam fossem.
Os obstáculos daquilo que, de outra maneira,
poderia voar demasiado alto
como a mais sublime estrela do firmamento
elevando-se acima do vazio intenso.”

 

WOODCOCK, George. História das Ideias e Movimentos Anarquistas. Prólogo. Pags 33-37. L&PM Editores, 2002.


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